Lá em casa nunca fomos religiosos. Os meus pais não casaram na igreja e não baptizaram as filhas. Que devíamos ser nós a escolher. Ninguém nos evangelizou. Ainda assim, porque eram outros os tempos, a religião estava presente na nossa vida de uma maneira ou de outra.
Havia a irmã Maria dos Anjos que aparecia de vez em quando na escola primária para dar a aula de religião e moral - não era obrigatório mas só havia uma menina, de uma família jeová, que ia com o professor fazer desenhos para outra sala. E vai-se a ver não me fez mal nenhum ouvir as histórias da Maria e do José e pintar os desenhos e aprender a cantar amar como Jesus amou. Ainda fui umas duas ou três vezes à catequese, porque todas as minhas amigas iam e eu queria ver como era, e no ciclo, apesar não estar inscrita nas aulas de religião, calha não calha no inverno pedia para assistir em vez de ficar uma hora à chuva.
Depois havia a vovó Ana que se emperiquitava todos os domingos para ir à missa. De vez em quando iamos com ela. Como um passeio. Eu adorava aquela coisa de estarmos sempre a sentar e a levantar. E as músicas, sempre gostei das músicas. A vovó Ana dava-nos moedas para pormos no cestinho que passava de mãos em mãos. E também nos ensinou a rezar o pai nosso e a avé maria. A certa altura, começámos a ter aulas de música e a aprender a tocar flauta com o doutor Gomes, que era, também, o responsável pelo coro e pelo órgão da igreja. À falta de outros palcos, o doutor Gomes pôs-nos a tocar na missa o santo, santo é o senhor e o aleluia e outras coisas do género. Domingo após domingo aprendi as lenga-lengas todas e a dar as respostas certas, palavra do senhor, graças a deus, glória a vós, senhor, ámen.
E havia ainda o padre Manuel António que com a sua serenidade e disponibilidade nos conquistou a todos no liceu, mesmo os que não tínhamos aula de religião e ele só nos conhecia dos corredores e das conversas. Também fomos, eu e a minha irmã, fazer o convívio fraterno, três dias no seminário a acordar ao som das violas, e as músicas, outra vez as músicas, mesmo sem acreditar emociono-me só de ouvir o pai nosso em ti cremos e canto com alegria levado pela mão com jesus eu vou. Três dias a falar das nossas dúvidas existenciais, que sempre as há na juventude, de onde viemos, para onde vamos, o que fazemos nós aqui. Três dias e no fim toda a gente rendida menos eu. Juro que me esforcei. Naquela altura já não era uma questão de querer ser igual aos outros, era mesmo uma necessidade. Eu tinha pena de não acreditar. Como isso me resolveria tanta angústia. Depois disso, persistente, ainda fui umas vezes ao grupo de jovens mas rapidamente percebi que estava toda a gente ali para falar de (e para tentar fazer algum) sexo. Obrigadinha mas para isso não preciso perder as tardes de sábado no gélido salão da paróquia.
De maneiras que lá em casa nunca fomos religiosos, que devíamos ser nós a escolher, diziam os meus pais, e deram-nos todas as oportunidades para isso e a minha irmã até andou ali quase para se baptizar e tudo mas eu, eu que queria mesmo era ficar descansadinha a achar que vamos todos para o céu e que os bons serão recompensados e que os maus se não os castigam os homens há de castigá-los deus, eu que acredito no amor acima de tudo, eu que, tirando a gula, até nem sou de grandes pecados, eu que não mato, não bato, não minto e não engano ninguém, eu que, vistas bem coisas, até sou uma boa cristã, esforcei-me e nada. Não sou capaz. Aqui estou acomodada à minha condição de agnóstica (ateia não, mesmo sem fé ainda não perdi a esperança de um dia, quem sabe).
E foi nesta condição de mãe-agnóstica que comprei um presépio para montar com o meu filho-não-baptizado e lhe explicar que há muito, muito tempo nasceu um menino chamado Jesus e que esse menino cresceu e foi tão bom e ensinou-nos tantas coisas que ainda hoje, todos os anos, festejamos o seu aniversário. O miúdo percebeu a parte do nascimento e dos reis a trazerem os presentes e que é por isso que também nós damos presentes e que dar é bom e tal mas o que ele gosta mesmo é de brincar às lutas com os bonecos. Bom, é um princípio. Para o ano será melhor. O mais importante é que ele não pense que o Natal é só prendas e renas e luzes e sapatinhos na chaminé. Isso não. Que acredite antes em Jesus que o pai natal não me interessa mesmo nada. Ainda estou para ver como é que farei para lhe falar de Deus. As coisas que uma pessoa faz pelos filhos.
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