Havia, em cima de uma das cómodas, uma fotografia do casamento da minha avó. Lá estava ela, magra, direita, saltos altos, o cabelo negro a cair-lhe nos ombros. Nunca a conheci assim. Para a mim a minha avó era baixa, cada vez mais baixa à medida que o tempo passava, baixa, redonda, sem cintura, o cabelo cinzento muito ralo. Uma bata por cima da saia e da blusa. Os dedos dos pés todos encavalitados. A coluna dorida, entortada por causa das horas passadas no tanque ou debruçada sobre as costuras. Muita gente dizia-me que eu era parecida com a minha avó. Nos olhos, no riso, nas covas da cara, na alegria. Nada me parece mais estranho. Não me lembro da minha avó alegre. Havia momentos em que estava feliz e chorava, porque chorava sempre quando estava feliz. Mas não era uma pessoa alegre. A minha avó, que antes de ser avó era mãe, abdicou da sua vida e da sua casa para que a sua filha pudesse ter uma vida o mais normal possível. Morava connosco e era ela que tomava conta da nossa casa e que cuidava de nós. Era (como me envergonho de o dizer) uma espécie de nossa criada. Com a diferença que nos amava demais e que era a nossa avó. Uma avó tão especial, tão importante, tão única que nunca a tratávamos pelo seu nome, Celeste. Havia a avó Helena, a Vovó Ana, a Ia. Mas a nossa avó era simplesmente avó e nunca se confundia com nenhuma das outras. Quando eramos pequenas era ela que acordava às três da manhã para nos dar o biberon ou para nos embalar. Era ela que fazia as compras, que lavava a roupa e a estendia na corda, que decidia a comida, que cozinhava, que nos deliciava ao almoço e ao jantar com pratos e sabores que tanta saudade me deixaram, e que depois lavava a loiça. Como uma criada, a cozinha era o seu mundo. Era lá que a encontrávamos sentada na sua cadeira de braços. Guardava a carteira na gaveta nos panos da loiça. E o fondue, que estava em cima do balcão e nunca foi usado, estava cheio de papelinhos escritos com a sua letra hieroglífica com receitas de arroz de tamboril e coelho à caçador que tirava dos programas de culinária da televisão. A minha avó deixou a escola a meio da segunda classe, mal sabia escrever mas quando eu comecei a trabalhar lia, todos os dias, os textos que eu escrevia, mesmo que falassem de espectáculos de dança contemporânea com bailarinos de pila à mostra e ela não percebesse quase nada do que aquilo queria dizer. A minha avó, a quem eu às vezes punha os rolos na cabeça, era um divertimento para nós embora o penteado não durasse mais do que umas horas, nunca se sentava à mesa para comer connosco. Como uma criada. Era preciso arrastá-la para a mesa no Natal. Mas emocionava-se quando lhe cantávamos os parabéns. E gostava de beijinhos e miminhos. Raramente discutia e quando discutia nunca gritava. Encolhia-se num canto e chorava as mágoas calada. Agora que penso nisso, tenho a sensação que viveu a vida toda subjugada. Ao marido, a quem devia respeitar e aturar as bebedeiras. À filha a quem serviu sempre, o amor incondicional é isto, para que ela quase não desse pela falta do braço que não tinha. Ao meu pai a quem nem se atrevia a responder. Às netas, crianças caprichosas para quem fazia batatas fritas. E descascava-me a fruta mesmo quando eu já não tinha idade para isso. E quando ao domingo à noite nos metíamos no expresso para Lisboa ela punha sempre qualquer coisa mais dentro do saco. Uns chocolates, umas pupias, um envelope com umas notas para irmos lanchar. Como uma criada, a minha avó aturava-nos a todos mas nunca ninguém lhe perguntava o que ela queria ou se estava bem ou se queria ir passear connosco. À medida que cresci fui tomando consciência de como eramos todos tão injustos com ela. Uma criança não nota mas depois começaram a surgir perguntas. Porque é que a avó nunca vem de férias connosco? Porque é que avó usa a casa-de-banho do quintal? Mas era demasiado tarde para mudar o que sempre foi assim. Ou eu também nunca tive coragem para aprofundar muito a questão. Todas as famílias têm os seus esqueletos. Os seus tabus. Evitam-se os confrontos. É mais fácil assim. Nunca tive coragem. Nem mesmo quando a minha avó morreu. Tantas vezes a tinhamos ouvido dizer que nesse dia não ia querer lá nem padre nem flores. Nem uma, dizia, garantindo que se alguém a desobedesse ela viria de onde estivesse para nos atormentar. E, no entanto, desobedecemos-lhe. O que iriam os outros dizer, então, não iamos pôr aqui uma flor? E lá veio o padre, ainda por cima um padre novo na terra, nunca tinha sequer visto a minha avó e pôs-se a dizer que nos despedíamos desta nossa irmã mas que o senhor a receberia bem. Até hoje acho que devia ter dito qualquer coisa. Em qualquer momento. Nem que fosse só desculpa, avó.
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