Monday, September 24, 2007

Leituras

Os livros da Anita. Era grandes e tinham a capa dura. Eram livros bons para ler na cama, antes de dormir, aos fins-de-semana de manhã, quando estava constipada. Li-os tantas vezes. Anita na praia, na piscina, na quinta, na escola. Anita de bicicleta, Anita e o pardalito, Anita mamã, Anita faz anos, Anita está doente. Os desenhos eram lindos, faziam-me sonhar. Li, depois, algumas teorias que dizem que os livros da Anita promoviam a ideia de que a mulher deveria ficar em casa e tomar conta da família. É possível, mas não me lembro. Deve ser por isso que, de vez em quando, mal-digo o meu trabalho e rezo para que me saia o euromilhões e possa pedir a demissão de uma vez. Imagino-me dondoca. E a culpa é da Anita, claro.

O Principezinho, de Saint-Exupéry. É um cliché mas é verdade. Deve andar lá por casa dos meus pais uma edição muito antiga, toda riscada e com algumas páginas em falta. As crianças são muito cruéis. Mas como o essencial é invisível aos olhos…

O meu pé de laranja lima, de José Mauro de Vasconcelos. Foi a minha professora de português do primeiro ano do ciclo quem mo ofereceu. Chamava-se Maria Luísa. Foi a primeira vez que chorei a ler um livro. Ainda hoje, quando passo por aquelas páginas, o comboio a apanhar o portuga e o rapaz que cresceu demasiado cedo, sinto um nó na garganta.

Enid Blyton. Não foram só os Cinco. Foram também as Gémeas e o Colégio das Quatro Torres. Eu e a minha irmã lemos as colecções até as páginas se descolarem todas umas das outras e as capas ficarem irremediavelmente amarfanhadas. Com Enid Blyton passei a sonhar com bacon e ovos fritos (eu não fazia a mínima ideia do que era bacon), a imaginar-me a jogar hóquei em campo e lacrosse (eu não fazia a mínima ideia do que era lacrosse) e a desejar estudar num colégio só de raparigas (está bom de ver que eu também não fazia a mínima ideia do que seria uma colégio só com raparigas).

Toda a Mafalda, de Quino. Acho que comecei demasiado cedo a ler aqueles volumes, penso que eram cinco, cada um da sua cor. Passaram-me ao lado algumas das piadas mais políticas, que tinham a ver com a guerra fria ou com a américa latina. Mas em compensação sei montes de tiras de cor. E continuo a lê-la. A Mafaldinha não envelhece.

Agatha Christie e livros de espiões. Tiveram a sua fase, algures na adolescência. Havia uma colecção dos Livros do Brasil. Foi com alguns desses livros que aprendi coisas sobre a segunda guerra mundial, a guerra fria, a Stasi e a Mossad. Acreditei, durante algum tempo, que Hitler estava vivo e escondido num bunker qualquer.

Gabriel García Márquez e Isabel Allende. É injusto pô-los assim, no mesmo saco, eu sei. É só uma questão de arrumação cronológica, andei a lê-los mais ou menos na mesma altura. Mas prefiro-o a ele, claro. Gosto dos romances, como toda a gente, mas gosto ainda mais dos contos. Pequenas histórias que deambulam entre a verdade e a ficção e que nos deixam com a sensação de que deveríamos andar mais atentos ao mundo, que está ao alcance de qualquer um encontrar personagens assim.

António Lobo Antunes. Comecei com a Exortação aos Crocodilos e fui andando para trás, à procura dos livros mais antigos, das histórias de África, das memórias da guerra. Mesmo quando as obras não são brilhantes tem pormenores de génio. Frases que mexem comigo. Os livros mais recentes parecem-me impenetráveis, mas a culpa não é dele, a culpa é minha que já não tenho disponibilidade para me entregar à sua escrita. Não se consegue ler um romance de Lobo Antunes entre viagens de metro e cinco minutos antes de adomecer. Os últimos dois livros estão na estante, à espera da minha reforma. Felizmente, tenho as suas crónicas para me matarem a sede.

Ensaio sobre a cegueira, de Saramago.
De profundis valsa lenta, de Cardoso Pires.
Carandiru e Por um fio, ambos de Drauzio Varella.
Porque há livros que nos revolvem por dentro.

Entre África, Portugal e o Brasil. É onde me encontro, neste momento. Amo os mais recentes de Agualusa (O vendedor de passados, As mulheres do meu pai), e as pequenas e grandes pérolas de Ruy Castro. Vou lendo o curso breve de literatura brasileira da Cotovia e vou dando um salto aos nossos (José Luís Peixoto, Pedro Rosa Mendes, Francisco José Viegas, Rui Cardoso Martins, etc.). Peço desculpa aos anglo-saxónicos, ao Paul Auster, ao Ian McEwan, ao Philip Roth, ao Don Delillo, ao Paul Bowles. Haverei de voltar às suas páginas um dia. Por agora, estou a gostar de ler sem precisar de tradução.

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Thursday, September 20, 2007

O principio

Lembro-me de tudo. Estava em casa da vovó Ana, na cozinha dos fundos, e havia uma mesa com tampo de metal. Também havia muita farinha e massa estendida em cima da mesa. Era Carnaval e no Carnaval era tradição fazer filhozes. Juntavam-se as avós todas mais a Perpétua, que nessa altura era a empregada, punham-se aventais e amassava-se e amassava-se. Depois estendia-se a massa com o rolo, cortava-se em longas tiras e fritava-se, com um garfo muito grande, à medida que se enrolava as tiras em caracóis depois polvilhados com açúcar e canela. Lembro-me de tudo. Eu ainda não tinha três anos e estava em cima de um banco a brincar com os restos da massa (e a comer alguns deles também) e, de repente, desequilibrei-me, o banco entortou-se, caí no chão e cortei-me. Tinha na mão um instrumento, cujo nome não me lembro (afinal, não me lembro de tudo), uma espécie de rodinha com que se cortava a massa. Havia umas de madeira e outras de metal. E foi com a de metal que me cortei, um pouco acima do lábio. Deitou muito sangue. Lembro-me do hospital, que ainda era o hospital antigo. Entrei ao colo do meu pai. Lembro-me da enfermeira, que morava na minha rua, e que me coseu. Lembro-me de chorar. "Não é nada, isto já passa." É a recordação mais antiga que tenho. Ficou. E ainda hoje, em certas expressões, se nota uma pequena ruga entre o lábio e o nariz.

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Tuesday, September 18, 2007

Bem bom


O sol acordou envergonhado. Vimos as formigas, as aranhas e os outros "bicharotos", corremos atrás dos passarinhos e sujámo-nos na terra. Depois, o pai acordou, a Vanessa da Mata começou a cantar, com e sem o Ben Harper, e sentámo-nos no muro a beber café e a vê-lo contente a baloiçar-se na rede. Se a vida fossem mesmo dois dias tinham que ser assim, como um fim-de-semana de fim-de-verão na Arrifana.

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Friday, September 14, 2007

Rugas

"Então e a menina o que deseja?" A menina sou eu. E de cada vez que um taxista ou empregado de balcão me trata assim, por menina, não sei se hei de ficar preocupada (meu deus, a minha mãe tinha razão, tenho que começar a ter mais atenção à roupa que uso, ir ao cabelereiro, pôr uma corzinha na cara, calçar uns saltos, deixar de ser criança, ter uma atitude adulta) ou feliz (sim, mantenho a jovialidade apesar de já ter passado dos 30 e de ser uma respeitável mãe de família). Opto geralmente pela segunda opção e não consigo evitar o sorriso. A menina que eu sou, no entanto, começa a sentir-se velha. Talvez ainda não se note nas rugas da cara mas...
Sei que estou a ficar velha quando, depois de ter saído um bocadinho à noite, acordo de rastos, como se tivesse levado uma sova, e passo o dia mal humorada, a rosnar para o lado e a contar os minutos que faltam para a hora de dormir.
Quando fico a olhar para os jovens que se sentam à minha frente no metro e tenho vontade de me zangar com eles porque dizem palavrões, porque se portam mal, porque, simplesmente, são parvos, ou porque se lambuzam e se apalpam e quase se despem, ignorando os olhares e os "hum hum" das pessoas à sua volta.
Quando num ano de muitos e bons concertos não vou a nenhum festival de música porque já não tenho paciência para casas de banho mal-cheirosas, filas para comprar uma bifana, cerveja em copos de plástico, cerveja entornada por cima de mim, cerveja de qualquer maneira, malta que já bebeu de mais ou chegar a casa com os sapatos todos sujos de pó.
Quando, ao falar com as estagiárias que acabaram de sair da faculdade, descubro que nasceram em 1986, nunca ouviram um disco de vinil nem uma cassete (e é preciso explicar-lhes que antes dos i-pod havia uma coisa chamada walkman), não viram filmes em VHS, não sabem o que é viver com dois canais de televisão, sem computador nem internet nem telemóvel, não imaginam a sua vida sem SMS nem messenger, não se lembram (não podem lembrar-se) da queda do muro de Berlim e têm uma vaga ideia de que houve uma guerra no Iraque antes daquela que hoje é notícia nos telejornais.
Quando alguma dessas estagiárias me trata por você. Não, você não. Eu sou a menina.

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Monday, September 10, 2007

Amigas

Sair das aulas, alugar um filme, chorar juntas, comer porcarias, ficar a conversar durante horas, partilhar segredos e angústias até adormecer.Lembram-se?

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Wednesday, September 05, 2007

Foca-se

Todos os dias, no caminho para a praia, passávamos pelo cartaz com os dois golfinhos. Olha os golfinhos, mãe. Até que, quase no final das férias, decidimos seguir as indicações – Guia, Algarve – e ver o que aquilo era. É o que dá ir de férias sem Internet. Não pudemos pesquisar no google para saber ao certo o que nos esperava e por isso foi com surpresa que, chegados à Guia, Algarve, nos deparámos com um gigantesco parque de estacionamento repleto de autocarros e automóveis e meninos de camisola verde que, simpaticamente, nos indicavam um lugar para estacionar mais longe, lá para o fundo. Também reparámos que daqueles carros saíam famílias inteiras com toalhas de praia e geleiras azuis, como se estivessem ali para passar o dia. Estranhámos. E só percebemos realmente o que se passava quando, depois de vinte minutos na fila para comprar os bilhetes, nos pediram 21 (vinte e um!) euros por adulto. Pois sim. Se eu soubesse que tinha de pagar 21 (vinte e um!) euros para entrar também me teria preparado para ficar lá o dia inteiro, não é? E nós nem fato-de-banho trazíamos. Ainda hesitámos. Mas, depois, enfim, já tínhamos feito o caminho, o puto perguntava pelos golfinhos e, afinal, uma vez não são vezes, estamos de férias, assim como assim a manhã de praia já está perdida e, por isso, lá fechámos os olhos e estendemos o cartão multibanco para pagar 42 (quarenta e dois!) euros para entrarmos no maravilhoso Zoomarine. O espectáculo dos golfinhos tinha começado há cinco minutos, lamentou uma outra menina de camisola verde que nos aconselhou a, entretanto, ir ver as aves tropicais. As aves tropicais eram quatro araras enfiadas numa gaiola. Não gostámos. Passámos pelas pipocas, pelos gelados e pelos carrosséis e fomos procurar as focas e os leões-marinhos. Como ainda faltava mais de meia-hora para o espectáculo destes animais, ficámos um bocadinho a bisbilhotar os tanques. Estávamos por ali quando, de repente, olho para trás e vejo uma multidão que se aproxima, passos apressados, em sofreguidão, em aflição para alcançar os melhores lugares. Tinham saído todos do show dos golfinhos e já se adiantavam para o das focas, que isto é um parque de lazer mas é preciso não perder pitada. Lá fomos, então. Meia hora sentados à espera. É agora, mãe? Não, filho, espera um bocadinho. Primeiro veio um palhaço que pôs toda a gente a bater palmas e recrutou uns elementos do público para a mais velha das rábulas do circo, quando o palhaço finge que vai fazer um filme e os convidados são os actores e etc. Finalmente, o espectáculo das focas. Mas não podia ser só as focas, isso seria demasiado simples, havia uma história e duas tratadoras-actrizes-palhaças que nos contaram a sua busca incansável pelo livro da felicidade. She searches for the book of happiness, dizia a voz off. Comecei a franzir o nariz. Tenho pouca paciência para historietas, ainda por cima com tradução simultânea. Olha, uma foca verdadeira. Look, it’s a real seal. Depressa. Quick. Não fujas. Don´t run. A coisa já me estava a enervar quando uma das tratadoras-actrizes-palhaças sacou de uma pistola e desatou aos tiros. O meu filho pediu colo e escondeu a cara. Primeiro “atingiram” uma foca. O bicho caiu no chão fazendo-se de morto. O público aplaudiu. E o miúdo pediu para ir para casa. Depois, uma das raparigas também foi “atingida” e caiu dentro da piscina. E houve risos. Assim, como se fosse natural. Quero dizer: eu não compro armas ao meu filho, lá em casa não há espadas nem pistolas, evitamos que ele veja lutas e outras violências na televisão e quando pensamos que vamos ver um inocente espectáculo de focas aos saltos apanhamos com isto? Ainda o espectáculo não tinha acabado já a malta se estava a levantar a correr para arranjar lugar noutro espectáculo, quase se atropelavam na saída. Nós ficámos sentados mais um pouco. Oh, mãe, porque é que a menina caiu na água?, perguntou a criança. Porque é que ela a matou? Para distrair o puto fomos até ao aquário, um tanque minúsculo e de água muito suja com dois tubarões, uns sargos e uns robalos. Ai que saudades do Oceanário. Na penumbra, encontrámos ainda uma réplica de uma baleia coberta de pó e teias de aranha e quando voltámos à superfície já era uma da tarde, o sol queimava a pele e as famílias ocupavam todas as sombras disponíveis para almoçar as sandes e as batatas fritas trazidas de casa. Acho que está na hora de ir embora, disse. Vamos. Dissemos adeus as meninas de camisola verde e saímos sem sequer passar pela loja das recordações. Estávamos quase a chegar a casa quando a voz do banco de traz se fez ouvir. Oh, mãe, afinal não vimos os golfinhos.

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Tuesday, September 04, 2007

Treze anos

Devo ao meu pai e ao meu avô algumas das peças de roupa mais originais da minha adolescência. A minha primeira gravata, umas quantas camisas, cintos de cabedal que não se colocavam exactamente na cintura mas meio descaídos, um colete de xadrez castanho que ainda hoje tenho, um casaco de camurça dos anos 60, uma gabardina, um casaco de cabedal preto com uma fivela pesadíssima e as mangas demasiado compridas (mas nós usávamos assim mesmo, com as mangas a tapar a mão quase toda, dava estilo), um pijama de botões, camisolas de lã grossa e gola alta (uma preta, uma cor-de-rosa velho, uma castanha), um chapéu daqueles pretos como têm todos os velhotes alentejanos e que na altura se tornou moda por causa da Madonna – “Who’s that girl”. Naquele tempo não se usava roupa de marca. Os orçamentos eram mais curtos do que as mini-saias, que também tiveram a sua época, e não havia zaras nem mangos por perto. Só os Porfírios, loja labiríntica na Baixa de Lisboa, com escadinhas e recantos, roupa muito preta de um lado e muito colorida de outro. Lembro-me perfeitamente de umas meias que lá comprei, pretas com bolinhas brancas, até à canela, e que usei até à exaustão durante um longo Inverno. Isto foi pouco depois da moda das perneiras (que, como a “dança jazz”, veio através da série “Fama”). Foi nos anos 80, quando as raparigas demoravam todos os dias meia hora, pelo menos, a empinar o cabelo naquilo a que na altura chamávamos uma “popa”. Era preciso acordar mais cedo para descarregar na cabeça a dose certa de laca ao mesmo tempo que se aplicava o secador a quente com a escova de enrolar a dar o feitio certo à obra de arte. Para me acompanhar nesta tarefa, levava para a casa-de-banho um rádio enorme, género tijolo mas ainda mais pré-histórico pois tinha sido trazido por algum avô dos tempos de África, e punha a tocar uma cassete com os xutos e pontapés a gritarem que de bragança a lisboa são nove horas de distância. Fui confirmar agora à net, só para não dizer asneiras, e eu tinha 14 anos quando esta música foi lançada e também tinha um lenço vermelho ao pescoço, como os que o Tim usava, e sabia a letra toda dos “Contentores” e lembro-me de morrer de tristeza porque a minha mãe não me deixava escrever com caneta nas calças e nos blusões de ganga como fazia a minha amiga Tânia que tinha uma série de pulseiras de cabedal no braço e as calças riscadas com a palavra xutos, xutos e o símbolo da anarquia muitas vezes. Agora que falo nisso, vêm-me à cabeça as músicas dos Wham e do Lionel Richie, dos Duran Duran e outros, cujo nome não me ocorre e não me apetece ir procurar na net, porque isto sim é mais deprimente do que a “popa”, o chapéu da Madonna ou os ombros postiços que nos faziam a todas parecer jogadores de futebol americano, mas que davam no programa do Adam Curry, todos os dias ao final da tarde. E comprávamos a revista Bravo, em alemão, só para ver as letras das músicas e ficar com os posters dos Modern Talking e de um tal Pierre Cosso de olhos azuis. Às vezes, quando tínhamos um furo, íamos para casa do Cabanas, que era logo ali ao lado, fechávamos as janelas e ouvíamos “slows”. Os Dire Straits e não sei quê. Podíamos dançar, dois a dois, com as mãos muito suadas por causa dos nervos, dos passos trocados e da sensação gostosa de estar a fazer qualquer coisa de proibido. Mas o mais comum era ficar cada um no seu canto e algumas raparigas choravam ao ouvir “I should have known better”. Quantos desgostos amorosos se teriam evitado se houvesse, então, aulas de substituição. Uma vez por semana, iamos ao cinema ver a “Academia de Polícias”, o "Crocodile Dundee" ou o que fosse o filme desse sábado e jurávamos a pés juntos que iamos ser amigos para sempre. Para sempre, pelo menos até ao nono ano. Tínhamos 13 anos em 1987 numa vila perdida do Alentejo e éramos tão inocentes como só era possível ser naquele momento, sem internet nem televisão a cabo, sem centros comerciais nem pizzarias, sem bares nem discotecas. Só nós, as nossas bicicletas e muita imaginação para pesquisar os armários dos pais e procurar peças de roupa com que imitávamos a moda vista nos telediscos. Roupa de marca branca.

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