O principio
Lembro-me de tudo. Estava em casa da vovó Ana, na cozinha dos fundos, e havia uma mesa com tampo de metal. Também havia muita farinha e massa estendida em cima da mesa. Era Carnaval e no Carnaval era tradição fazer filhozes. Juntavam-se as avós todas mais a Perpétua, que nessa altura era a empregada, punham-se aventais e amassava-se e amassava-se. Depois estendia-se a massa com o rolo, cortava-se em longas tiras e fritava-se, com um garfo muito grande, à medida que se enrolava as tiras em caracóis depois polvilhados com açúcar e canela. Lembro-me de tudo. Eu ainda não tinha três anos e estava em cima de um banco a brincar com os restos da massa (e a comer alguns deles também) e, de repente, desequilibrei-me, o banco entortou-se, caí no chão e cortei-me. Tinha na mão um instrumento, cujo nome não me lembro (afinal, não me lembro de tudo), uma espécie de rodinha com que se cortava a massa. Havia umas de madeira e outras de metal. E foi com a de metal que me cortei, um pouco acima do lábio. Deitou muito sangue. Lembro-me do hospital, que ainda era o hospital antigo. Entrei ao colo do meu pai. Lembro-me da enfermeira, que morava na minha rua, e que me coseu. Lembro-me de chorar. "Não é nada, isto já passa." É a recordação mais antiga que tenho. Ficou. E ainda hoje, em certas expressões, se nota uma pequena ruga entre o lábio e o nariz.
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