Devia ser 1999. Devia ser final de 1999. Lembro-me de um ciclo de conferências em que o tema era a utopia (lembras-te, Sónia?). Eduardo Prado Coelho falou sobre a dança. Porque, para ele, a dança, inalcançável, era um lugar utópico. "Nunca dancei." Ele dizia aquilo, e apontava para o seu corpo enorme, e sorria, e nós rimos todos, e ele continuou com a sua voz afável, que não é a voz de quem dá uma conferência, é a voz de quem se senta numa mesa de café a falar com os amigos.
Não encontrei o texto todo, só este bocadinho:
"Nunca dancei. Vi os outros dançarem, em terraços voltados para o mar, no chão de areia de África ou do Brasil, em clandestinos infernos de bares de marinheiros ou em inflamadas discotecas de praias turísticas, vi-os e julguei-os felizes, esquecidos e voláteis, perdidos e enovelados numa bola de fogo, mesmo se às vezes os pares se rompiam e ela vinha sentar-se a chorar, e então eu pensava que ainda havia palavras que podiam funcionar como carícias, que eu sabia dizê-las, palavras redondas encostadas à face magoada e triste. Também dancei sem que os outros soubessem que eu dançava, mas dancei fora da dança, porque dançava para mostrar que também dançava, e lembrava-me disso em cada passo, e nunca esquecia que era o meu corpo que dançava, e nunca soube dançar sobre o esquecimento do corpo, nunca ninguém dançou sobre o meu corpo como se fosse a areia da praia ou um terraço voltado para o mar, nunca ninguém que eu sentisse os dois esquecidos de mim.
Pouco a pouco, aprendi a olhar a arte da dança, e passei noites inteiras no dslumbramento de os ver, sem palavras úteis que me explicassem o que ali se passava à minha frente. Era apenas ficar sentado com os olhos colados ao vidro de um mundo outro em que os corpos se multiplicavam como estrelas no momento preciso em que ainda se não tinham tocado, mas já começavam a precipitar-se uns para dentro dos outros. Eles dançavam, esplêndidos, gloriosos, e eu ao vê-los sei que nunca dancei. [...]"
EPC, Paris (16.3.92)
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