Nunca tinha ido a um tribunal. Até que, há uns meses, por motivos profissionais, tive que começar a acompanhar um julgamento. Tive sorte. O caso até é engraçado. Um crime de sangue que envolve uma mulher supostamente desconfiada das traições do marido, um marido que por sua vez desconfia que a mulher só está interessada no dinheiro dele, uns amigos famosos e uns pobres coitados contratados para executar o serviço. Confesso que fiquei fascinada com este novo mundo. O tribunal, pelo menos este onde tenho que ir de duas em duas semanas, é assim uma espécie de teatro. Tudo começa à entrada - onde há uma porta para os artistas (advogados e juizes) e uma fila de gente que se acotovela em zigue-zague à espera para mostrar o bilhete de identidade a uma senhora mal-encarada que pergunta ao que vamos e nos dá um cartão para pendurar na lapela. Os visitantes passam depois pelo detector de metais e os polícias bisbilhotam nas malas à procura de facas, limas das unhas e afins. Se alguém levar uma garrafa de água tem de deixar a tampa ali mesmo, como acontece nos concertos, não vá algum visitante mais entusiasmado atirar com a garrafa à tola de um juiz. Por esse mesmo motivo, lá dentro não se vendem bebidas nem comidas, a não ser um café manhoso que sai de uma máquina. Quem quiser beber água ou vai lá fora ou vai à casa-de-banho - local absolutamente deprimente, uns sanitários mal-cheirosos e desconfortáveis como já nem se vê nas estações de comboio mais recentes.
Chegamos então à sala de audiências. Bancos corridos de madeira. O palco lá ao fundo. Sempre que o juiz entra ou sai lá temos nós que nos levantar, que o respeitinho é muito bonito. Os polícias que por ali circulam também intervêm se alguém se esquece de tirar o boné ou o chapéu, ah, pois, isto é um tribunal, nada de coisas na cabeça, onde é que já se viu? Adiante. Os figurinos são péssimos. Todos vestidos de preto, os advogados, os juízes e os funcionários do tribunal querem com aquela vastiota convencer-nos que ali dentro eles não são eles, que deixaram na rua os seus interesses pessoais e são apenas meros agentes da justiça. Puro teatro, eu não dizia? A gente finge que acredita. Vamos deixar a farsa continuar por mais um bocadinho.
A acústica é lamentável, até porque alguns actores esquecem-se de falar para o público e enredam-se em conversas entre eles mesmos, quase imperceptíveis para quem está na última fila (mas onde é que está o encenador desta peça?). Há uns microfones mas é apenas para tudo ficar gravado. Quanto ao texto, ai meu deus, mauzinho, mauzinho. Uma catadupa de palavras desnecessárias e linguagem opaca. É ver os advogados a ditarem os seus pareceres à secretária, com pontos, vírgulas e parágrafos, como se estivessem na escola primária. E como é tudo de improviso, as frases são repetitivas e intermináveis, juro que se alguém for ler aquilo tudo no fim não há de fazer sentido nenhum. Nem mesmo para o douto tribunal. Mas não é tudo assim tão mau. Reconheço que fiquei agradavelmente surpreendida com a eficácia da nossa polícia que, ao menos uma vez, parece não ter estragado provas nem desvirtuado o local do crime, e apresentou como provas listagens de chamadas telefónicas, fotografias das câmaras do metro e até estudos sobre a projecção das gotas de sangue na parede, que até parecia que estávamos a ver um episódio do CSI. Só faltavam os óculos escuros do inspector. As testemunhas deram o seu melhor, o que nem sempre é suficiente. Mas compreende-se. Não é fácil ir ali, de cabelo arranjado e sapatos de domingo, para acusar alguém de ser um assassino. Uma coisa é contar a história a um amigo, outra, bem diferente, é jurar pela sua honra, que aquilo se passou assim, tal e qual. "Então, quanto tempo demorou a subir as escadas? Cinco minutos? Sete?" E a porteira a pensar, mas que raio, desta é que não estava à espera, eu costumo dizer ao senhor do terceiro que vou lá ter em dois minutos, mas isso é uma coisa que a gente diz, como quem diz que vai num pé e vem no outro, será que demorei seis minutos ou mais uns segundinhos? Felizmente o meretísimo é simpático, um homem que gosta de dizer uma piada de vez em quando e de despachar os assuntos. "Então, jura que vai dizer a verdade, não vai?" E com as coisas postas deste modo quem é que se atreve a dizer que não?
A acção arrasta-se como numa telenovela. Há sessões em que não acontece nada, ficamos por ali empanados em requerimentos e indeferimentos, rodriguinhos jurídicos que mais não servem do que para prolongar o suspense até ao próximo episódio. Os espectadores, esses, não ficam nada satisfeitos. Além dos familiares e amigos, os lugares estão sempre cheios de jornalistas, advogados estagiários e, pasme-se, gente que não tem nada a ver com o caso mas está ali, sessão após sessão, apenas para estar a par das novidades e poder fazer comentários no fim. Não devem ter mais o que fazer, imagino. Ou então moram ali ao lado e em vez de ficarem a ver o programa do Goucha dão um saltinho até ao tribunal. Não sei, é um mistério para mim. Talvez se levantem todos a bater palmas na próxima sessão quando, finalmente, ficarmos a saber como termina esta história. Isso sim, seria um grande final. Aplausos em pé enquanto os polícias levam os culpados de volta para a prisão. Felizes para sempre.
Labels: trabalho, vidinha