Wednesday, April 30, 2008

O ninho

Comprei milhões de embalagens de soro fisiológico e de compressas esterilizadas, desta vez já sei como é. Lavo roupinhas minúsculas. Arrumo gavetas. Esterilizo chupetas e biberons. Verifico a mala. Os documentos. Faço listas. Não esquecer de mandar fazer outra chave de casa. Não esquecer de carregar o telemóvel. E a máquina fotográfica. Não esquecer de verificar se a bomba do leite funciona. Não esquecer de explicar tudo muito bem explicadinho ao pai, que vai estar nervoso, os sítios das coisas, os procedimentos, os números de telefone. E o puto, é preciso ter a avó de prevenção, ter um plano, e se for de noite como fazemos? Tenho a sensação que me estou a esquecer de alguma coisa. Lavo ainda mais roupa. Arrumo a casa. Passo a swifer. Deito-me no sofá. Espero.

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Sunday, April 27, 2008

Dia da mulher, segunda parte

Estávamos a folhear os jornais do fim-de-semana quando a ouço dizer: "Não percebo porque é que ele escolheu uma grávida para ministra, se daqui a uns meses vai ter que meter licença, não faz sentido nenhum". Não, não foi a minha mulher-a-dias que disse isto (até porque eu não tenho mulher-a-dias), foi antes uma das pessoas que eu mais respeito e admiro neste mundo, a minha irmã, a minha irmãzinha, mulher independente, decidida, que faz, pode e acontece com a sua vida, mulher que estudou e sabe coisas, que lê, que ensina os jovens e que os ensina bem, e que até é mãe. Não queria acreditar. O quê? Desculpa, mas tu achas mesmo isso? E ela continua dizendo que não achava normal, então se alguém a iria ter que substituir durante estes meses mais valia ter sido logo esse alguém a aceitar o cargo e mais não sei quê. E eu a perguntar se as mulheres competentes deveriam ser discriminadas por serem mulheres, se entre um homem e uma mulher se deveria sempre contratar o homem porque esse, ao menos, nunca iria meter licença, se não era contra isso que andávamos a lutar há mais de um século. E no meio da discussão (sim, porque isto já era uma discussão, e o meu tom de voz já estava lá em cima e eu já nem me conseguia controlar de tanta perplexidade) ainda a ouço dizer que não, que as mulheres não podem ser discriminadas mas que sim, que é verdade, que não deviam aceitar cargos de decisão quando estão grávidas pois quando metem licença isso é muito perturbador e até deu um exemplo lá da escola dela de uma colega, coitada, que teve o azar de ser directora de turma e agora está de licença de gravidez e é uma grande chatice porque há imensos assuntos para tratar. Pois claro. Como se as mulheres que aceitam ser ministras ou directoras de empresas ou qualquer assim com mais poder tivessem que assinar um compromisso - e durante este tempo prometo que não vou engravidar que é para não prejudicar ninguém. E eu a perguntar se as mulheres teriam de continuar sempre a ter de optar entre a família e a carreira, se isto queria dizer que iríamos ficar costureiras para a vida toda e, ai meu deus, nem quero imaginar o que acontecerá quando for possível tirar licença de um ano, aí vai ser o fim do mundo, desaparecerão as poucas mulheres que estão no topo das carreiras - ou então ficarão para sempre impedidas de ter filhos. A conversa terminou mal. Nenhuma de nós mudou de opinião e só restou um silêncio incómodo, enquanto continuámos a folhear os jornais. E eu a pensar no que ainda temos de caminhar. A pensar que, afinal, o dia da igualdade ainda vai tardar. E, pior do que isso, a pensar que tudo o que eu disse, tudo o que eu defendo, são apenas palavras jogadas fora. A verdade, verdadinha, é que milhares de mulheres são discriminadas hoje em dia nas suas carreiras apenas por serem mulheres. A verdade, verdadinha, é que eu própria fiz a minha opção, voluntariamente, sem pressões. Entre ser a empregada modelo, que trabalha até às 11 da noite, disponível todos os fins-de-semana e tem algum poder nas mãos e ser uma mãe-não-modelo-mas esforçada, que dá o seu melhor, janta à mesa com os filhos e lhes dá um beijo de boa-noite, a decisão foi tão simples como se eu vivesse no século XVII e ainda usasse espartilho. Um espartilho na cabeça.

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Wednesday, April 23, 2008

Dás-me um autógrafo?

“O tempo passa, os cabelo embranquecem mas as verdadeiras amigas jamais se esquecem.” Esta era talvez a frase mais popular nos livros de autógrafos. Todas tínhamos um. Livrinhos pequenos, comprados para o efeito, com folhas brancas e grossas, enfeitados com bonequices, o meu é mais bonito que o teu. Sempre que alguém se cruzava na nossa vida pedíamos-lhe um autógrafo. Uma frase, um desenho, um conselho. Coisas de meninas, obviamente. Meninas que na escola primária escreviam com letra bonitinha, cheia de rebicoques, e que depois passaram a escrever com letra redonda, simplificada, quase ilegível, grandes bolas em cima dos is, letra de gente grande, imaginávamos. Pedíamos autógrafos aos amigos, aos professores mais especiais (houve alguns, é verdade), aos escritores que nos visitavam na escola (a Matilde Rosa Araújo, a Alice Vieira), à família. “A vida é uma estrada, com buracos às vezes, é preciso guiar bem para não cair neles”, escreveu o meu pai. A minha tia desenhou uma escada: “Esta é a escada da vida, sobe-a e vencerás”. Cito de cor. Não sei onde foi parar o meu livrinho de capa azul, cuidadosamente protegido por um plástico, para durar da escola primária até à C+S, e cheio de quadras foleiras que exaltavam a amizade “para sempre”, prometíamos umas às outras. Não sou de guardar muitas recordações. Tirando as fotografias, organizadas em álbuns, desde que tive a minha primeira máquina lá pelo sétimo ano (na verdade, herdei a máquina da minha mãe, uma daquelas que tiravam fotografias quadradas mas que, apesar de antiquada, fazia um sucesso, eu era a única que podia fotografar as nossas palhaçadas no recreio), mas, dizia eu, tirando as fotografias que ainda hoje gosto de rever, não guardei mais nada, nem cartas, nem diários, nem mesmo o livro de autógrafos. Foi tudo parar ao lixo numa das últimas arrumações e o que sobrou está agora a ter o mesmo destino – sempre que falo com a minha mãe, ainda atarefada a esvaziar a nossa casa de sempre, ela confronta-me com mais uma tralha de infância: e os livros dos cinco? E a tua flauta? E a colecção de selos? E eu não tenho resposta, mas que raio, não tenho espaço para arrumar tanto passado nas minhas pequenas assoalhadas de Benfica. As coisas que verdadeiramente importam ficam guardadas nas nossa memória, tento convencer-me. Não preciso da papelada para me lembrar das pessoas de quem gostei. E de certa forma isso é verdade. O livro de autógrafos já deve ter ido para reciclar e aqui estou eu a pensar nelas, na Cristina, na Filipa, na Tânia, na Dina, na Andreia, na Luísa, na Xana, na Patrícia. Que baboseira adolescente terei eu escrito nos livrinhos delas?

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Monday, April 21, 2008

Quem me dera ser onda

Falta um mês. Talvez menos. Já tenho ficha na maternidade, já assinei a dizer que, sim, quero a epidural, e desta vez é bom que resulte, ouviram?, já ouvi as explicações todas sobre o que devo fazer quando sentir que chegou hora, já tenho a mala pronta, já recebi os folhetos sobre as vantagens da amamentação. Entrei, oficialmente, em estágio para o parto. Não me peçam para ser criativa, para pensar em coisas sérias, para me dedicar ao trabalho, para ter paciência, para ter ideias, para me preocupar com os problemas dos outros, para ter energia. Tenho direito a um mês de egoísmo, não tenho? De preferência, deitada num canto a domirtar.

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Wednesday, April 16, 2008

Dia da mulher

Em Espanha, metade dos ministros são mulheres. Uma delas tem a pasta da defesa. E, por acaso, está grávida. O facto não a impede de cumprir as suas funções, como, por exemplo, passar revista às tropas. E é isto uma notícia?
Aparentemente, e infelizmente, sim. A mente dos homens adora estes desvios à normalidade. A coisa tem uma certa perversão que os entusiasma e excita de alguma forma. Ali está uma mulher, no auge da sua feminilidade, a comandar as tropas compostas por homens com H grande e músculos de aço. Imagino o que não passará por aquelas cabeças perversas. Só pode ser essa a explicação para se dar tanta atenção a um facto tão banal. É que, desde que as mulheres conquistaram o direito ao trabalho (sim, por muito que o detestemos, é um direito), elas têm vindo a dar cartas nas áreas mais diversas, incluindo aquelas antes dominadas por homens. Há cada vez mais mulheres nas universidades, nos jornais, no ensino, nos hospitais, nas fábricas. Elas são advogadas e juízes, empresárias, bancárias, deputadas, imagine-se que até têm o desplante de ser ministras, polícias, militares, taxistas, camionistas, sapateiras e outras coisas assim estranhas. E todas elas, é verdade, apesar de trabalharem, insistem em continuar a engravidar e a ser mães. Ah, não sabia? Ninguém ainda tinha reparado? Eu própria sou a prova viva disso. Aqui ando, de barriga redonda, a trabalhar dez horas por dia e nem por isso a minha fotografia aparece nos jornais. Mas isto foi só um aparte, não é isto que está em causa. O que está em causa é o facto de o mundo ainda se surpreender com tudo isto e de ainda se fazerem notícias de jornais a dizer, olha, que engraçada que ela é, naquele tom condescendente que os homens usam para dizer deixa-as lá brincar ao poder. O que está em causa é que o mundo (especialmente o nosso pequeno mundo português) ainda se surpreenda por as mulher serem, fazerem, acontecerem, falarem e terem opinião. Só por isso é que é notícia que a mulher de um dirigente político participe numa manifestação contra a política do partido do marido (o quê? mas ela, como mulher, não devia concordar com tudo o que ele diz?). Ou que a namorada do primeiro-ministro seja criticada por... ser competente e por isso ter emprego? ... ou porque continua a ter as suas convicções e a gostar de manifestá-las em vez de se calar, fingir-se de morta, apagar-se, desaparecer e limitar-se a ser a namoradinha?
A coisa tem que mudar. Já está a mudar. No meio diplomático, outrora dominado por homens, às mulheres restava o papel de bibelot. Esposas dedicadas, lá iam atrás dos seus homens. Vestiam-se e pintavam-se, recebiam os convidados e organizavam chás de caridade. Com cada vez mais mulheres diplomatas, os maridos destas vêem-se numa posição estranha. Ninguém espera que eles desistam das suas carreiras para ir atrás das mulheres. Ou que se dediquem a servir sopa ao pobres. Ou que organizem leilões. Estão, então, à procura de novas funções. E assim ha de ser com tudo o resto, esperemos. Vai chegar o dia em que, no dia da mulher, já não se farão notícias sobre as mulheres "extraordinárias" que ocupam cargos de topo ou que lideram empresas. E que, apesar disso, não têm bigode nem usam botins ortopédicos. Vai chegar?

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Friday, April 11, 2008

Duvidas de uma mulher muito gravida

Quando a menina do laboratório de análises diz que eu devo aparecer lá em jejum e com a primeira urina do dia, isso significa que não posso assaltar o frigorífico durante a madrugada? E quererá ela o meu xixi das cinco da manhã ou o das sete?

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Monday, April 07, 2008

A acelerar

Chegámos a casa já tarde depois de um dia cheio. Depois do "maravilhoso" mundo da Disney no gelo (não esquecer de escrever na agenda: experiência a não repetir, nunca mais) e do almoço em casa da avó, seguimos directamente para uma tarde de brincadeira em casa de amigas - uma amiga minha e uma amiguinha dele. Às dez da noite, sentados na cozinha a comer uma sopa e uma banana, conversávamos sobre todas as coisas que tínhamos feito.
Ele: oh mãe, onde é que a luisinha comprou a mota dela?
[ele adora motos, já sabíamos disso, e foi a primeira vez que andou numa mini-moto, daquelas com motorzinho e tudo, é só carregar no botão e lá vai ele]
Eu: não sei filho, porquê?
Ele: estava só a perguntar. achas que custa muitos euros?
Pronto, eu sei que os miúdos são matreiros e arranjam sempre maneira de nos aldrabar e seduzir. Mas quem é que consegue resistir a uma coisa destas?

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Saturday, April 05, 2008

Dores

Nunca tinha ido a um tribunal. Até que, há uns meses, por motivos profissionais, tive que começar a acompanhar um julgamento. Tive sorte. O caso até é engraçado. Um crime de sangue que envolve uma mulher supostamente desconfiada das traições do marido, um marido que por sua vez desconfia que a mulher só está interessada no dinheiro dele, uns amigos famosos e uns pobres coitados contratados para executar o serviço. Confesso que fiquei fascinada com este novo mundo. O tribunal, pelo menos este onde tenho que ir de duas em duas semanas, é assim uma espécie de teatro. Tudo começa à entrada - onde há uma porta para os artistas (advogados e juizes) e uma fila de gente que se acotovela em zigue-zague à espera para mostrar o bilhete de identidade a uma senhora mal-encarada que pergunta ao que vamos e nos dá um cartão para pendurar na lapela. Os visitantes passam depois pelo detector de metais e os polícias bisbilhotam nas malas à procura de facas, limas das unhas e afins. Se alguém levar uma garrafa de água tem de deixar a tampa ali mesmo, como acontece nos concertos, não vá algum visitante mais entusiasmado atirar com a garrafa à tola de um juiz. Por esse mesmo motivo, lá dentro não se vendem bebidas nem comidas, a não ser um café manhoso que sai de uma máquina. Quem quiser beber água ou vai lá fora ou vai à casa-de-banho - local absolutamente deprimente, uns sanitários mal-cheirosos e desconfortáveis como já nem se vê nas estações de comboio mais recentes.
Chegamos então à sala de audiências. Bancos corridos de madeira. O palco lá ao fundo. Sempre que o juiz entra ou sai lá temos nós que nos levantar, que o respeitinho é muito bonito. Os polícias que por ali circulam também intervêm se alguém se esquece de tirar o boné ou o chapéu, ah, pois, isto é um tribunal, nada de coisas na cabeça, onde é que já se viu? Adiante. Os figurinos são péssimos. Todos vestidos de preto, os advogados, os juízes e os funcionários do tribunal querem com aquela vastiota convencer-nos que ali dentro eles não são eles, que deixaram na rua os seus interesses pessoais e são apenas meros agentes da justiça. Puro teatro, eu não dizia? A gente finge que acredita. Vamos deixar a farsa continuar por mais um bocadinho.
A acústica é lamentável, até porque alguns actores esquecem-se de falar para o público e enredam-se em conversas entre eles mesmos, quase imperceptíveis para quem está na última fila (mas onde é que está o encenador desta peça?). Há uns microfones mas é apenas para tudo ficar gravado. Quanto ao texto, ai meu deus, mauzinho, mauzinho. Uma catadupa de palavras desnecessárias e linguagem opaca. É ver os advogados a ditarem os seus pareceres à secretária, com pontos, vírgulas e parágrafos, como se estivessem na escola primária. E como é tudo de improviso, as frases são repetitivas e intermináveis, juro que se alguém for ler aquilo tudo no fim não há de fazer sentido nenhum. Nem mesmo para o douto tribunal. Mas não é tudo assim tão mau. Reconheço que fiquei agradavelmente surpreendida com a eficácia da nossa polícia que, ao menos uma vez, parece não ter estragado provas nem desvirtuado o local do crime, e apresentou como provas listagens de chamadas telefónicas, fotografias das câmaras do metro e até estudos sobre a projecção das gotas de sangue na parede, que até parecia que estávamos a ver um episódio do CSI. Só faltavam os óculos escuros do inspector. As testemunhas deram o seu melhor, o que nem sempre é suficiente. Mas compreende-se. Não é fácil ir ali, de cabelo arranjado e sapatos de domingo, para acusar alguém de ser um assassino. Uma coisa é contar a história a um amigo, outra, bem diferente, é jurar pela sua honra, que aquilo se passou assim, tal e qual. "Então, quanto tempo demorou a subir as escadas? Cinco minutos? Sete?" E a porteira a pensar, mas que raio, desta é que não estava à espera, eu costumo dizer ao senhor do terceiro que vou lá ter em dois minutos, mas isso é uma coisa que a gente diz, como quem diz que vai num pé e vem no outro, será que demorei seis minutos ou mais uns segundinhos? Felizmente o meretísimo é simpático, um homem que gosta de dizer uma piada de vez em quando e de despachar os assuntos. "Então, jura que vai dizer a verdade, não vai?" E com as coisas postas deste modo quem é que se atreve a dizer que não?
A acção arrasta-se como numa telenovela. Há sessões em que não acontece nada, ficamos por ali empanados em requerimentos e indeferimentos, rodriguinhos jurídicos que mais não servem do que para prolongar o suspense até ao próximo episódio. Os espectadores, esses, não ficam nada satisfeitos. Além dos familiares e amigos, os lugares estão sempre cheios de jornalistas, advogados estagiários e, pasme-se, gente que não tem nada a ver com o caso mas está ali, sessão após sessão, apenas para estar a par das novidades e poder fazer comentários no fim. Não devem ter mais o que fazer, imagino. Ou então moram ali ao lado e em vez de ficarem a ver o programa do Goucha dão um saltinho até ao tribunal. Não sei, é um mistério para mim. Talvez se levantem todos a bater palmas na próxima sessão quando, finalmente, ficarmos a saber como termina esta história. Isso sim, seria um grande final. Aplausos em pé enquanto os polícias levam os culpados de volta para a prisão. Felizes para sempre.

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