A dor
Cá a mim podem chamar-me insensível à vontade. Não me importo. Gosto muito de estar grávida, de sentir a barriga a crescer, de fantasiar o meu bebé, de me sentir mãe desde o primeiro dia em atraso. Gosto ainda mais de ser mãe, de passar horas a olhar para o bebé (um bebé é como as ondas do mar ou como as labaredas de uma fogueira, uma pessoa nunca se cansa de ficar a olhar), de o ver crescer fora de mim, de me deliciar, em cada nova fase, com as suas aprendizagens, os primeiros passos, as primeiras palavras, o raciocínio cada vez mais elaborado. Mas não gosto do que está pelo meio. Lamento. E cá a mim podem chamar-me insensível à vontade, que eu não me importo, pois a verdade é que não consigo ver onde é que está a maravilhosa beleza do parto. Há até quem diga que o dia em que deu à luz foi o mais feliz da sua vida. A sério? Pois a mim a felicidade costuma doer-me um bocadinho menos. É que, não sei se já tinha dito, mas a mim, insensível como sou, nem a epidural me consegue afectar. Nada. Nicles. Uma fraude. Vem a anestesista e promete, com aquele ar de quem tem um poder mágico, que a próxima contracção ainda me vai doer mas que a outra já será menor e à terceira não sentirei nada. E eu, tansa, apesar da experiência de há quatro anos, ainda acredito. Achei que desta vez é que era. Mas não. À terceira contracção continuo a contorcer-me e daí a pouco já estou outra vez a bufar ou a soprar ou lá o que é que nos ensinam nas aulas de preparação para o parto, mas uma coisa é a Graça Mexia a dizer-nos ‘vem aí uma contracção’ e a gente imagina que dói e aquilo não custa, é só respirar e pronto, outra coisa bem diferente é começarmos a senti-la de facto, vem aí, vem aí, e não há nada que acalme aquela dor, uma pontada que vem sabe-se lá de onde e se espalha da barriga e dos rins até ao resto do corpo, uma coisa assim quase demoníaca, digo-vos eu que até nem costumo ser muito queixosa e quem me conhece sabe que não me deixo abater facilmente por uma gripe qualquer. Só que isto não é uma dorzinha de dentes nem uma ferida no joelho. Isto é um parto, senhoras e senhores, um parto à moda antiga, com direito a gritos e suores, uma coisa verdadeiramente animal - ali, de pernas abertas, a tentar expulsar a cria que carregámos durante nove meses, somos animais, não há outra hipótese, não há beleza nem tranquilidade nem marido a dar a mão que nos safe, só há força, força, força, sai daí puto, vá, deixa lá a mãe descansar. E, então, sim, lá vem a felicidade. Uma enorme felicidade. Por tudo ter finalmente terminado.
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