Wednesday, December 26, 2007

O avô

O avô era uma personagem do García Márquez. Em toda a sua vida de 94 anos deve ter dito meia dúzia de frases e quase todas sem grande importância. Ninguém sabia exactamente o que é que ele achava da vida, com que sonhava, o que lhe passava pela cabeça durante as horas e horas que passava encostado à parede, perto dos correios, do lado onde batia o sol se fosse inverno, do lado da sombra se fosse verão. Quando eu nasci era albardeiro, tinha uma oficina escura, cheia de palha e serrapilheira para fazer enormes albardas e molins que depois vendia, quase sempre aos ciganos, que eram os poucos que ainda tinham cavalos e burros por aqueles lados. Depois, com o aumento da idade e a diminuição da procura, tornou-se artesão, o que era muito mais chique. Fazia albardas e molins mas em miniatura, enfeitados de lãs coloridas, era procurado por lojas e fotografado para os jornais. Isto até as articulações dos dedos incharem desmesuradamente e o trabalho se tornar demasiado penoso. Mesmo quando já não trabalhava, o avô acordava cedo. Ouvia do meu quarto o despertador que tocava às sete da manhã e ele a levantar-se, os passos pelo corredor até chegar à nossa porta. Meninas, está na hora de acordar. E enquanto nós nos despachávamos o avô ia comprar papossecos e punha a mesa do pequeno-almoço. Era sempre assim, todos os dias. De manhã comia de pé e a refeição era acompanhada pelo batuque, uma colher que saltitava pelas chávenas, os frascos da tofina e do mokambo, o açucareiro e a manteigueira. Às vezes também assobiava ou tamborilava com os dedos na mesa. É que o avô tocava na banda desde miúdo. Foi o homem do bombo e, quando o bombo se tornou muito pesado, mudou para os pratos. Desfilava pelas ruas atrás da procissão com a farda bordeaux e um passo quase militar, era ele que marcava o ritmo das marchas no 25 de Abril e no 5 de Março, o feriado municipal. No inverno, quando tínhamos que sair de casa ainda de noite para ir para a escola, o avô acompanhava-nos até meio do caminho. Ficava a ver-nos da esquina. Mas não dizia nada. Ia à sua vida, com o boné na cabeça, encostava-se a uma parede ao sol ou à sombra, ia a casa almoçar, voltava para o muro, ia a casa lanchar, voltava para a rua, vinha jantar, tratava do lixo, que era sua responsabilidade, e já não saía mais – a não ser que fosse dia de ensaio da banda. Deitava-se cedo com um boa noite sumido. Cheirava a after-shave Denim e gostava de açorda. Ia a muitos funerais e emagreceu muito nos últimos anos. O “avô velhinho”, como lhe chamavam os mais pequenitos da família, morreu poucos dias antes do natal. Foi o último dos avós a deixar-nos. Tenha pena. E tenho medo. Apesar de adorar todos meus avós (e eram muitos, muitos mais do que as pessoas normalmente têm), tenho a certeza que as próximas mortes serão muito mais dolorosas. E isso é verdadeiramente assustador.

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Saturday, December 15, 2007

Sininho de Natal

Estava tudo combinado. No dia da amniocintese, o meu homem não foi trabalhar para me poder acompanhar ao hospital e depois ficar em casa a dar-me miminhos. E,para evitar esforços e contratempos, o puto ia ficar em casa dos avós. Estava tudo combinado menos a festa de natal. Pela primeira vez, o nosso rebento ia subir ao palco. Ainda fiz a conversa à médica, à espera de uma aprovação, mas ela nem pestanejou. O pai que leve a câmara de filmar, propôs. Assim, enquanto a família aplaudia, entusiasmada, eu fiquei deitada, no meu quarto com vista para o estádio da luz. Parece que o miúdo estava super-contente com o seu fato de sino e que passou mais tempo a acenar para a plateia do que a cantar a música de natal. Um sucesso, portanto. Quando lhe liguei, depois do jantar, para dar boa-noite, contou-me tudo. Sabes como foi? Eu tinha uma roupa feita com um saco de plástico e era um sininho, e o pai e a avó e o avô foram me ver. As palavras atingiram-me com uma violência que eu não esperava. Prometi para mim mesma: não vou deixar que isto volte a acontecer, não vou deixar que isto volte a acontecer. E, no entanto, poderei eu garantir que vou estar sempre lá, nas festas, nos jogos, nas primeiras vezes, nas vezes que forem importantes?

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Friday, December 07, 2007

Mudanças 3

Precisava de um livro. Procurei na estante, revolvi as caixas que ainda estavam fechadas. Voltei a procurar na estante. E a revolver as caixas. Quase desesperei. Haveria mais caixas com livros no outro quarto? Sinto-me perdida na minha própria casa. Tenho que ir ao Ikea comprar prateleiras e arrumar o escritório de uma vez por todas. Está decidido. Depois do Natal, bem, o mais certo é que seja depois do ano novo, mas está decidido, logo que tenha tempo vou comprar prateleiras. Posso não saber onde estão os sapatos mas não conseguir encontrar o principezinho é um pouco demais.

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Thursday, December 06, 2007

Mudanças 2

Ainda não temos televisão por cabo. Dos outros canais, supostamente abertos, a TVI não dá sinais de vida e os outros três mal se vêem, está o telejornal todo chuvoso, as novelas às ondinhas, ora a cores ora a preto e branco. Assim sendo, há uma semana que não vejo de televisão e, por incrível que pareça, ainda não estou a ressacar, não tenho tremores nem delírios. Acho que poderia viver assim, a deitar-me às onze sem ter visto a anatomia de grey nem o serviço de urgência nem os desaparecidos nem a outra que sonha com crimes. Acho que poderia viver sem o canal panda a debitar anúncios a brinquedos, sem os "acelaracers" depois do jantar, sem futebol e sem o emocionante campeonato de snooker do eurosport. Será que consigo convencer os meus companheiros de casa?

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Wednesday, December 05, 2007

Mudanças 1

Deitei fora dossiers de fotocópias do tempo da faculdade. Sapatos que não usava há uns oito anos. Loiça que tinha trazido de casa da minha avó e nunca chegou à mesa. Bugigangas acumuladas em gavetas, pode sempre servir para alguma coisa, pensamos, e depois nunca serviu para nada. Uma pasta cheia de folhas rabiscadas pelo meu filho quando tinha dois anos. Deitei fora, sem mágoa. Sacudi o pó ao passado e prossegui, confiante, para a casa nova. Não fossem as dores nas costas e o nariz a pingar pelas alergias e prometia repetir a experiência pelo menos a cada dez anos.

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