As palavras voltaram. E as gripes tambem.
Eu e os meus filhos estamos doentes sempre ao mesmo tempo. Começa um com tosse, logo o outro, solidário, desata a espirrar e quando damos por nós estamos os três de nariz a pingar e voz nasalada. Se eles herdaram a minha propensão para ficar de cama não vai ser bonito, não, senhor, pois eu fui daquelas que passei a infância a tomar xaropes, a acordar a meio da noite para ir ao hospital com falta de ar, a chamar o doutor Costa que, felizmente, morava mesmo à nossa frente, para receitar antibióticos às horas mais inapropriadas, a enfiar a cabeça por baixo de uma toalha para melhor inalar os vapores de um alguidar com água a ferver e essência de eucalipto. Naquele tempo não tinhamos bronquiolites, como agora se diz, mas tinhamos anginas e constipações com fartura.
A coisa foi de tal ordem que, aos cinco anos, me internaram na clínica de são lucas para ser operada ao nariz e à garganta. Lembro-me como se fosse hoje do quarto com duas camas, uma para mim e outra para o meu pai, que foi também quem me carregou ao colo, escadas abaixo, até quase à sala de operações. Lembro-me do cheiro da anestesia, o gás a sair da máscara, então como te chamas? maria joãzzzzzzzz. Uma tarde, já em casa, tive a visita da educadora Graça com todos os meus amigos da pré-primária que me trouxeram umas bolachas de chocolate polvilhadas com açúcar (as coisas de que a gente se lembra). Eu comia papa Nestum e bebia muitos sumos concentrados de pêra da Compal que se vendiam em latinhas pequenas. E faziam-me uma papa com leite morno e bolachas, vai-se a ver foi nessa altura que aprendi a gostar de molhar as bolachas no leite, no café e até mesmo no chá, faço-o até hoje, como o Clark Gable em It Happened One Night, é uma arte essa a de molhar os bolos no café.
Apesar da operação as doenças continuaram. Não passou muito tempo e já estava outra vez com uma pneumonia que afinal era uma tuberculose. Meses e meses a levar picas, se eu encontrasse o meu boletim de vacinas poderia confirmá-lo, tiveram que pôr uma folha em anexo porque já não havia espaço naquela página para assinalar tantas picas. Meses e meses a tomar um xarope cor-de-rosa, três colheres de cada vez, o que vale é que era docinho. Meses e meses caminho de Beja para tirar radiografias, o frio do metal na barriga, e a fazer análises, o que eu chorava com aquele garrote no braço e quanto mais chorava mais doía. Nesse ano não fomos para a praia, a conselho do médico fizemos férias em Penacova, junto ao Mondego, para respirar ar puro e, todos os dias, depois do almoço, tínhamos que ficar duas horas no quarto a descansar, eu por causa da doença e a minha irmã para me fazer companhia, coitada.
Meses e meses nisto e um dia o médico descobre que afinal não era tuberculose coisa nenhuma, era um quisto no pulmão, não se sabia se mau se menos mau, que nisto dos quistos não há nenhum que seja bom, e lá vamos nós para Lisboa, os meus pais com o coração nas mãos mas a fingir que não é nada, acordámos às seis da manhã porque não havia auto-estradas e a viagem era longa e tínhamos que estar às nove na consulta do hospital de santa maria. Elevador sete, piso oito, não demorei muito a orientar-me nos corredores daquele hospital enorme. Fiquei internada na enfermaria de senhoras dos serviços cardio-pulmonares, não sei porque não fiquei na pediatria mas assim até foi bom. Nas semanas que lá passei tornei-me a mascote do serviço, sabia os nomes das enfermeiras, era mimada pelas outras pacientes e pela doutora Teresa que me operou. Outra vez aquele cheiro da anestesia mas desta vez custou mais acordar, tantos tubos, o corpo dorido, muita sede. Eu nem sete anos tinha e devia estar meio zonza mas lembro-me perfeitamente da sala dos cuidados intensivos, aquele calor de estufa, o silêncio só interrompido pelos zumbidos e apitos das máquinas, os tubos por todo o lado, a cama a deslizar pelos corredores para me levar dali. Os meus pais, consigo agora imaginar o que devem ter sido aquelas horas para eles, até consigo ver o meu pai nervoso a andar de um lado para o outro, sei agora o que deve ter sentido a minha mãe enquanto esperava que a médica viesse dizer que já estava e que afinal não era nada de mau, era benigno, não bom, benigno, se fosse religiosa até teria soltado um graças a deus. Passei duas semanas de roupão a comer aquela comida sem sal. Lembro-me dos queques maravilhosos que se vendiam no café do rés-do-chão. Se fechar os olhos consigo ainda sentir o cheiro da cera dos corredores de santa maria. Deram-me livros de histórias e livros de colorir. Chorei muito quando me tiraram os pontos, despedi-me com beijinhos de toda a gente e desci pelo elevador sete para voltar, periodicamente, durante cinco anos que isto com quistos, mesmo benignos, nunca se sabe.
Fui para casa com uma cicatriz, uma costura como se dizia então, que me atravessava as costas e que era um sucesso entre os meus colegas. Mostra lá, e eu levantava a blusa e deixava toda a gente espantada. A minha mãe punha-me todos os dias creme Nívea daquela lata azul e foi vendo a cicatriz dela que eu percebi que a minha também não iria desaparecer nunca mais. Nunca mais, mãe? Nunca mais. Entendi e aceitei, fomos educadas assim, nunca mais pensei nisso, não fiquei traumatizada, não tive crises na adolescência por causa do meu corpo costurado, nunca me envorgonhei e, para dizer a verdade, a maior parte do tempo até me esqueço que tenho ali uma cicatriz enorme. Passo meses sem pensar nela e, às vezes, quando chega o Verão e visto uma roupa mais decotada, há alguém que pergunta o que é isso? e eu demoro uns segundos a lembrar-me, isso o quê?, ah, é minha cicatriz.
Bom, vitória, vitória acabou-se a história, fui feliz para sempre apesar de as doenças terem continuado. Acabei por aceitar que este é o meu estado normal, hei de andar sempre entupida, com uma tosse qualquer, uma alergia que me faz coçar o nariz desesperadamente, habituei-me a andar sempre com lenços de assoar e já não me lembro da última vez em que estive realmente a cem por cento. De vez em quando pioro e aí penso, estou doente, é melhor tomar qualquer coisa. Uns comprimidos, um xarope, umas gotas pro nariz. Quando eu estou doente estamos os três, como agora, malditos genes, é uma sinfonia de tosse lá em casa, a ver quem tem a ranhoca mais esverdeada, de quem é agora a vez de usar o aerossol. Os vírus devem adorar uma família assim.
Cof cof. Cof cof cof.
Se eles herdaram a minha propensão para a gripe-contínua não vai ser bonito, não, senhor.
Iremos à bruxa ou será que esta verborreia toda serve como exorcismo?
A coisa foi de tal ordem que, aos cinco anos, me internaram na clínica de são lucas para ser operada ao nariz e à garganta. Lembro-me como se fosse hoje do quarto com duas camas, uma para mim e outra para o meu pai, que foi também quem me carregou ao colo, escadas abaixo, até quase à sala de operações. Lembro-me do cheiro da anestesia, o gás a sair da máscara, então como te chamas? maria joãzzzzzzzz. Uma tarde, já em casa, tive a visita da educadora Graça com todos os meus amigos da pré-primária que me trouxeram umas bolachas de chocolate polvilhadas com açúcar (as coisas de que a gente se lembra). Eu comia papa Nestum e bebia muitos sumos concentrados de pêra da Compal que se vendiam em latinhas pequenas. E faziam-me uma papa com leite morno e bolachas, vai-se a ver foi nessa altura que aprendi a gostar de molhar as bolachas no leite, no café e até mesmo no chá, faço-o até hoje, como o Clark Gable em It Happened One Night, é uma arte essa a de molhar os bolos no café.
Apesar da operação as doenças continuaram. Não passou muito tempo e já estava outra vez com uma pneumonia que afinal era uma tuberculose. Meses e meses a levar picas, se eu encontrasse o meu boletim de vacinas poderia confirmá-lo, tiveram que pôr uma folha em anexo porque já não havia espaço naquela página para assinalar tantas picas. Meses e meses a tomar um xarope cor-de-rosa, três colheres de cada vez, o que vale é que era docinho. Meses e meses caminho de Beja para tirar radiografias, o frio do metal na barriga, e a fazer análises, o que eu chorava com aquele garrote no braço e quanto mais chorava mais doía. Nesse ano não fomos para a praia, a conselho do médico fizemos férias em Penacova, junto ao Mondego, para respirar ar puro e, todos os dias, depois do almoço, tínhamos que ficar duas horas no quarto a descansar, eu por causa da doença e a minha irmã para me fazer companhia, coitada.
Meses e meses nisto e um dia o médico descobre que afinal não era tuberculose coisa nenhuma, era um quisto no pulmão, não se sabia se mau se menos mau, que nisto dos quistos não há nenhum que seja bom, e lá vamos nós para Lisboa, os meus pais com o coração nas mãos mas a fingir que não é nada, acordámos às seis da manhã porque não havia auto-estradas e a viagem era longa e tínhamos que estar às nove na consulta do hospital de santa maria. Elevador sete, piso oito, não demorei muito a orientar-me nos corredores daquele hospital enorme. Fiquei internada na enfermaria de senhoras dos serviços cardio-pulmonares, não sei porque não fiquei na pediatria mas assim até foi bom. Nas semanas que lá passei tornei-me a mascote do serviço, sabia os nomes das enfermeiras, era mimada pelas outras pacientes e pela doutora Teresa que me operou. Outra vez aquele cheiro da anestesia mas desta vez custou mais acordar, tantos tubos, o corpo dorido, muita sede. Eu nem sete anos tinha e devia estar meio zonza mas lembro-me perfeitamente da sala dos cuidados intensivos, aquele calor de estufa, o silêncio só interrompido pelos zumbidos e apitos das máquinas, os tubos por todo o lado, a cama a deslizar pelos corredores para me levar dali. Os meus pais, consigo agora imaginar o que devem ter sido aquelas horas para eles, até consigo ver o meu pai nervoso a andar de um lado para o outro, sei agora o que deve ter sentido a minha mãe enquanto esperava que a médica viesse dizer que já estava e que afinal não era nada de mau, era benigno, não bom, benigno, se fosse religiosa até teria soltado um graças a deus. Passei duas semanas de roupão a comer aquela comida sem sal. Lembro-me dos queques maravilhosos que se vendiam no café do rés-do-chão. Se fechar os olhos consigo ainda sentir o cheiro da cera dos corredores de santa maria. Deram-me livros de histórias e livros de colorir. Chorei muito quando me tiraram os pontos, despedi-me com beijinhos de toda a gente e desci pelo elevador sete para voltar, periodicamente, durante cinco anos que isto com quistos, mesmo benignos, nunca se sabe.
Fui para casa com uma cicatriz, uma costura como se dizia então, que me atravessava as costas e que era um sucesso entre os meus colegas. Mostra lá, e eu levantava a blusa e deixava toda a gente espantada. A minha mãe punha-me todos os dias creme Nívea daquela lata azul e foi vendo a cicatriz dela que eu percebi que a minha também não iria desaparecer nunca mais. Nunca mais, mãe? Nunca mais. Entendi e aceitei, fomos educadas assim, nunca mais pensei nisso, não fiquei traumatizada, não tive crises na adolescência por causa do meu corpo costurado, nunca me envorgonhei e, para dizer a verdade, a maior parte do tempo até me esqueço que tenho ali uma cicatriz enorme. Passo meses sem pensar nela e, às vezes, quando chega o Verão e visto uma roupa mais decotada, há alguém que pergunta o que é isso? e eu demoro uns segundos a lembrar-me, isso o quê?, ah, é minha cicatriz.
Bom, vitória, vitória acabou-se a história, fui feliz para sempre apesar de as doenças terem continuado. Acabei por aceitar que este é o meu estado normal, hei de andar sempre entupida, com uma tosse qualquer, uma alergia que me faz coçar o nariz desesperadamente, habituei-me a andar sempre com lenços de assoar e já não me lembro da última vez em que estive realmente a cem por cento. De vez em quando pioro e aí penso, estou doente, é melhor tomar qualquer coisa. Uns comprimidos, um xarope, umas gotas pro nariz. Quando eu estou doente estamos os três, como agora, malditos genes, é uma sinfonia de tosse lá em casa, a ver quem tem a ranhoca mais esverdeada, de quem é agora a vez de usar o aerossol. Os vírus devem adorar uma família assim.
Cof cof. Cof cof cof.
Se eles herdaram a minha propensão para a gripe-contínua não vai ser bonito, não, senhor.
Iremos à bruxa ou será que esta verborreia toda serve como exorcismo?
6 Comments:
Olá Maria João,
comoveu-me o seu post.
Há alguns meses que acompanho o seu blog. Normalmente solto um sorriso, mas desta vez estive quase a soltar uma lágrima!
Como tb sou mãe, doi pensar na dor de uns pais perante a incerteza de um diagnóstico de uma filha. O seu relato foi mto lúcido e equilibrado, o que para mim demonstra os bons pais que tem!
Um abraço,
Cidália Loureiro
É engraçado a maneira de ver as coisas das crianças.
Os pormenores em que reparam e todas as sensações que guardam.
depois de um post destes estou sem palavras...
As melhoras para todos
és demais, joãozinha. os teus textos são bombons. Devoram-se. :)
ola
eu estou na fase dos TCA por forma a decidirem se são quistos ou nódulos.confesso uma certa ansiedade mas confesso também, que após a leitura desta vivência, um sorriso de valentia e de esperança, se abateram sobre mim.Que meus pais e irmã.que se chama também Maria João- não tenham que esperar por mim, enquanto eu saio da sala de operações e que meu filho sorria porque tem a mãe saudável e sorridente de sempre ao seu lado.
A ver vamos.
ola
eu estou na fase dos TCA por forma a decidirem se são quistos ou nódulos.confesso uma certa ansiedade mas confesso também, que após a leitura desta vivência, um sorriso de valentia e de esperança, se abateram sobre mim.Que meus pais e irmã.que se chama também Maria João- não tenham que esperar por mim, enquanto eu saio da sala de operações e que meu filho sorria porque tem a mãe saudável e sorridente de sempre ao seu lado.
A ver vamos.
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