Cronica de uma morte anunciada
Não sei que lhe diga, senhor guarda, estávamos tão bem, éramos felizes, sabe?, éramos mesmo, nunca tive que dizer dela, nem uma coisinha assim, sempre ali, ao meu lado, não percebo o que se passou. Estávamos juntas há tanto tempo, foi a faculdade toda, depois o emprego, um emprego decente, não era o melhor do mundo mas era uma coisa certa, pelo menos até agora que isto nos tempos que correm nunca se sabe, depois vieram os miúdos, mudámos para uma casa maior, um carro de família, estava tudo a correr tão bem. Se calhar acomodámo-nos, já não desafiamos o mundo, já não sonhamos acordadas, já não morremos de paixão. A gente deixa-se embrenhar nesta coisa da vida e quando damos por nós estamos a fazer crochet com uma manta nos joelhos, é o que é. Mas eu não queria. Não sei que lhe diga, senhor guarda, não percebo o que me passou pela cabeça. Fizemos tantas coisas juntas. As noitadas, as viagens, as bebedeiras, os dias sem horários nem compromissos. Tanta coisa. A nossa vida era uma festa. Éramos felizes, juro. Não sei o que se passou. Agora que penso nisso acho que andávamos um bocado afastadas ultimamente. Mas achei que fosse uma fase, sabe como é, os miúdos hão de crescer, um dia destes faço uma dieta, inscrevo-me no ginásio, sei lá, compro uns cremes para as rugas e isto volta tudo ao lugar. É o que todos dizem, provavelmente. Mas não volta. Passa um dia, passa outro. E eu, não sei, comecei a meter coisas na cabeça, achei que ela me ia deixar, veio-me assim uma raiva, sabe? Não sei como fui capaz, a sério, não sei porque a matei. Como é que eu vou viver agora, senhor guarda, como é que vou viver sem a minha juventude?
Labels: envelhecer, Vida
4 Comments:
e há polícia que resgate a perda da inocência!? onde? quando? como? porquê?
Respeitando o seu período de férias, só hoje regressei aqui. Deliciei-me durante largos minutos com os posts que escrveu depois do regresso. Em grande forma! As férias fazem mesmo bem.
Eu também tenho medo de chegar a uma fase da vida, olha para trás e achar que devia ter vivido de outra maneira...
Lindo!
és um génio! parabéns pela tua escrita!
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